«…A espécie humana não poderá continuar
por muito tempo com a sua cegueira ambiental
e com a sua falta de escrúpulos
na exploração da Natureza.»
José Lutzenberger, ambientalista gaúcho
“Tragédias acontecem e, alguns dias depois, começam a reconstruir o arrasado”. É assim, de uma forma irônica e desencantada, que abre o seu editorial o jornal eletrônico OSOL (https://albertovillas.com/2024/05/15/osol-quarta-15-maio-24/), para repetir o óbvio: este modelo de sociedade global, baseado na espoliação inconsequente e destruição do planeta, precisa ser revisto imediatamente, sob pena de que acabemos extintos todos nós, em meio à tragédia climática que ano após ano avança a patamares sempre mais elevados. Uma realidade facilmente avaliada não só pelas imagens dos estragos, mas também pelos números empilhados nas estatísticas. O que acontece no Rio Grande do Sul é mais um episódio da tragédia e certamente não será o último. Levantamento divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais-INPE aponta que atualmente há 47 milhões de pessoas sob alto risco de inundações no Brasil.
No estado do Rio de Janeiro, para não ir muito longe, foram contabilizados entre os anos de 2017 e 2022 pelo menos 2,9 milhões de pessoas afetadas por desastres “ambientais”, contados os mortos, feridos, desaparecidos e desabrigados, vítimas em sua maioria dos deslizamentos e inundações que se seguem na esteira das chuvas torrenciais. Pelos dados da Defesa Civil, só em 2022 foram cerca de 1,5 milhão de moradores atingidos por ocorrências desse tipo no território fluminense. O impacto devastador de catástrofes recorrentes é ampliado por fatores, por exemplo, de cunho socioeconômico, mas suas causas podem ser atribuídas em grande parte a práxis antropocênica de se relacionar de forma predatória com o meio ambiente.
Os descaminhos desse desenvolvimentismo fundado no lucro acima de tudo e na extrema concentração da riqueza acima de todos vem sendo combatidos há muito tempo, ao que parece sem a ressonância necessária. Uma dessas vozes ecoa continuamente há quarenta anos. Gestada ainda em 1984, a partir de uma feira agroecológica realizada em Nova Friburgo, a Associação de Agricultores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro-ABIO, vem disseminando neste tempo preceitos e práticas sustentáveis e regenerativas como alternativa aos paradigmas de uma agricultura hegemônica centrada no desmatamento, monocultura e uso intensivo de insumos fósseis (agrotóxicos, combustíveis e fertilizantes), coisas em boa parte responsáveis pelo anormal aquecimento da atmosfera que assola a Terra.
A agroecologia e a agricultura orgânica “tem atitudes incontestáveis em favor do resfriamento do planeta”, afirma o presidente do conselho de administração da ABIO, o ambientalista Ghandi de Carvalho Pinto. Ele cita a manutenção das estruturas vegetais nas unidades de produção, a fixação de carbono, o uso adequado e racional dos recursos naturais e a alta biodiversidade gerada nos consórcios vegetais pela via agronômica agroflorestal como exemplos dessa outra forma de cultivar alimentos. Para Ghandi, o manejo adotado nos sistemas orgânicos e agroflorestais também previne a erosão dos solos e o assoreamento dos cursos d’água. Isso tudo é “uma gigantesca contribuição a esse enfrentamento, uma agricultura que protege e regenera”, diz.
“Nem sempre percebemos com clareza o nexo entre agricultura e crise climática”, pondera Cristina Ribeiro, uma das fundadoras da ABIO e atual coordenadora-executiva da instituição. Ela entende que a agricultura tem, sim, alguma responsabilidade sobre tragédias como esta do Rio Grande do Sul e terá “um imenso papel a desempenhar na reconstrução do estado e na necessária e urgentíssima mudança de rumo do nosso planeta”. O fator que embasa esta argumentação, segundo ela, é simples: “Um desenvolvimento rural sustentável (sustentável de verdade!) só vai acontecer pela agroecologia. É o momento de impulsionar muito fortemente e de forma objetiva os processos de transição agroecológica”.
“Reconhecendo o papel que a agricultura convencional tem exercido na expansão do aquecimento global – com suas técnicas que deixam o solo exposto, acabam com a diversidade e a biomassa e usam de forma maciça compostos petroquímicos -, vimos que a forma agroecológica de fazer agricultura vai na direção contrária”, afirma Ghandi de Carvalho. Quase como revelasse um segredo, ele desabafa: “Na adversidade, quem tem segurado a Terra é o pequeno agricultor”. Somem a isso os ganhos imensuráveis advindos da agroecologia em aspectos como a valorização do comércio justo, o escoamento local da produção, a criação de melhores condições de vida no campo (em detrimento da ocupação periférica das cidades), o respeito à mão-de-obra das mulheres e a criação de redes de distribuição fundamentais para garantir a segurança alimentar da população.
Ghandi mora com a família em uma pequena propriedade em Cachoeiras de Macacu povoada pelos mais diversos “seres arbóreos”, como ele às vezes se refere às árvores. É um verdadeiro horto botânico, denso, com espécies tão variadas quanto as “pancs” e enormes exemplares de frutíferas amazônicas que criam um microclima diferente das propriedades circunvizinhas. Ele compartilha a certeza da Cristina quando ela diz que “a atividade agrícola precisa adotar de forma radical tecnologias de base ecológica e avançar rapidamente na direção da agricultura orgânica. Só assim teremos a chance de reverter o futuro sombrio que nos espera”. Ambos parecem estar atentos ao alerta feito pelo Antônio Bispo dos Santos: A terra dá, a terra quer.
ABIO
A ABIO aglutina uma rede interestadual de centenas de famílias de agricultores e produtores orgânicos. Nessas quatro décadas de existência, trabalha para ampliar as condições de acesso aos alimentos por meio da produção – em geral por agricultores familiares – e do processamento e comercialização de alimentos de base limpa, agroecológicos e orgânicos. Se fosse possível resumir sua trajetória a apenas uma luta, esta seria pela promoção e defesa da Segurança Alimentar e Nutricional nos territórios em que atua.
Além de associação de produtores, a ABIO se constitui também como um Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade, como definido em lei. Dessa forma, oferece a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos produzidos pelos seus associados. Ancorada nos saberes do seu corpo técnico e do conjunto de seus membros, a ABIO atuou de forma decisiva na elaboração da legislação brasileira de orgânicos, sobretudo na incorporação do modelo de Sistema Participativo de Garantia (SPG) adotado pelo Brasil e replicado em outros países posteriormente.
A ABIO é também gestora de 13 feiras orgânicas semanais no Rio e Niterói, importante canal de distribuição dos “alimentos de verdade” oriundos de várias regiões do estado e da própria área metropolitana. Isso tem impacto direto na segurança alimentar, nos parâmetros lei orgânica de SAN (lei nº 11.346/2006.) quanto ao Direito Humano Alimentação Adequada (DHAA). Em suas rotinas a ABIO busca facilitar a interação dos associados produtores e do seu corpo técnico com instituições governamentais, acadêmicas e de pesquisa.
Euler Dantas
Euler Dantas, 60 anos, é jornalista, membro do Conselho de Ética e ex-diretor de Comunicação da ABIO.
Legenda: ABIO: ação coletiva de plantio de mudas para formar uma agrofloresta com mais de vinte tipos de frutíferas no sítio do Adalberto em Barra Grande, Paraty.
Fotos: Ramón Diaz Benitez
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